
Locais onde o acesso a alimentos in natura ou minimamente processados é escasso ou inexistente, são denominados desertos alimentares. Já os pântanos alimentares são territórios onde prevalece a oferta de produtos altamente calóricos e ultraprocessados, como redes de fast food e lojas de conveniência. Os dois ambientes criam a necessidade das pessoas se locomoverem para outras regiões para obter alimentos saudáveis.
O Guia Alimentar para a População Brasileira estabelece que alimentos ultraprocessados são os produtos obtidos a partir de fragmentos de outros alimentos, com aditivos químicos e uso de técnicas industriais complexas. Eles são encontrados nas gôndolas dos mercados, contendo geralmente cinco ou mais ingredientes, incluindo os de nomes pouco familiares (maltodextrina, por exemplo).
Uma pesquisa realizada pela USP na cidade de Jundiaí aponta que no centro do município, em áreas de média e alta renda, o número de estabelecimentos que priorizam a venda de alimentos ultraprocessados é 5 a 6 vezes maior que o número que vendem alimentos naturais. Tal problemática atinge com maior gravidade as periferias de média e baixa renda, onde o número de estabelecimentos que vendem ultraprocessados é 22 vezes maior.
Ao passo que a população que tem maior acesso territorial a alimentos in natura e minimamente processados consome mais desses alimentos, populações periféricas registram um maior consumo de alimentos ultraprocessados, destacando a geografia urbana como um importante obstáculo para alimentação saudável.
Tanto desertos quanto pântanos alimentares geram doenças nutricionais, criando um ambiente obesogênico que é um dos fatores que contribuem para o aumento dos casos de obesidade na população de baixa renda, que está relacionado a inacessibilidade a alimentos saudáveis e aumento das redes de fast food nos territórios que vivem.
Outras pesquisas apontam que na capital paulista o cenário se difere, onde pântanos alimentares são mais prevalentes nos distritos paulistanos mais ricos e com maior garantia de lucro, onde o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) é considerado alto, ou seja, está acima de 0,8. O IDH varia entre 0 e 1, calculando longevidade, escolaridade e renda média, e busca mensurar a qualidade de vida em um determinado território, porém é notável que o índice não considera a qualidade do consumo alimentar que afeta a qualidade de vida.
O ambiente alimentar obesogênico aumenta as chances de desenvolvimento de doenças crônicas não transmissíveis (DCNTs), como alguns tipos de câncer, diabetes e hipertensão.
A obesidade gera alterações na microbiota intestinal, que está envolvida em várias funções fisiológicas do metabolismo como por exemplo: processar e digerir nutrientes, produzir metabólitos e moldar o sistema imunológico.
As comorbidades relacionadas à obesidade podem se iniciar na infância apresentando fatores de risco cardiovascular. Estudos apontam uma forte associação entre maior índice de massa corporal (IMC) durante a infância e a adolescência e aumento do risco de várias doenças malignas na idade adulta, incluindo leucemia, Doença de Hodgkin, câncer colorretal e câncer de mama. Os mecanismos não são totalmente compreendidos, porém várias adipocitocinas e marcadores inflamatórios, parecem ser relevantes nesse processo.
A obesidade foi associada a síndrome metabólica que é um conjunto de fatores de risco para doenças cardiovasculares, incluindo aumento da circunferência da cintura, medidas de dislipidemia (triglicerídeos elevados e colesterol HDL baixo), indicadores de resistência à insulina e hipertensão arterial.
Outro fator é que a privação de sono parece influenciar o ganho de peso em crianças, estudos apresentam a ligação entre a curta duração do sono e o desenvolvimento de resistência à insulina, sedentarismo e padrões alimentares não saudáveis.
Até o momento, as intervenções contra a obesidade se concentraram principalmente em mudanças comportamentais individuais, e é notável que essas medidas não levam à redução efetiva da prevalência dos casos, não sendo sustentável a longo prazo para a maioria das pessoas.
Importante ressaltar que estudos também revelam que alguns pacientes mantêm uma boa saúde cardiometabólica apesar de serem obesos, por isso são necessárias avaliações individuais que incluem o cuidado de não reproduzir discursos gordofóbicos que gerem culpabilização do indivíduo pelo seu estado de saúde, visto que são inúmeros fatores que perpassam o desenvolvimento da obesidade, não sendo uma simples escolha individual.
Portanto, intervenções e ações governamentais são necessárias para o tratamento da obesidade. Em relação ao público infantil o ParentCorps é um modelo de educação na primeira infância que tem sido estudado como uma intervenção efetiva no tratamento da obesidade infantil, um dos pilares do programa é a equidade racial e a construção de uma parceria entre professores e pais para aumentar a eficácia das práticas escolares e parentais.
Outras intervenções de proteção incluem a redução da disponibilidade de estabelecimentos do tipo fast food no entorno das escolas, regulação da mídia, particularmente da propaganda direcionada às crianças e um sistema de rotulagem que proteja os interesses dos consumidores.
No México, foi adotada a taxação de bebidas adoçadas e de lanches embalados, e os resultados mostraram que o aumento no preço desses alimentos é capaz de reduzir o consumo dos mesmos.
Além disso, o aumento do acesso físico aos supermercados (redução dos desertos alimentares) associou-se à redução de sobrepeso e obesidade da população pelo aumento no consumo de alimentos in natura. Em contrapartida, o maior acesso físico às lojas de conveniência (aumento de pântanos alimentares) apresentou efeito contrário nas taxas de sobrepeso e obesidade.
O incentivo de estabelecimentos que forneçam alimentos saudáveis em bairros de alta vulnerabilidade contribui para redução da insegurança alimentar e melhora nas condições de saúde dessas populações.
O debate sobre o acesso a alimentos saudáveis não pode estar desconectado da necessidade de rever o sistema alimentar centrado no agronegócio e monocultura, que além do impacto ambiental, gera o agravamento da desigualdade social. Desse modo, além das ações citadas acima, defender a agricultura familiar, a agroecologia e a agricultura urbana é também essencial para gerar mudanças na estrutura social que contribuem para a saúde de todos os seres.
Nutricionista Valkiria Assis
CRN-3 71936/P
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