O direito dos povos a uma alimentação nutritiva, culturalmente adequada, acessível, sustentável, ecológica, assim como a decisão de qual sistema alimentar e produtivo será vigente, são características que configuram o conceito de Soberania Alimentar.
O Brasil é um dos países com maior concentração fundiária (grande quantidade de terras sob posse de um número muito pequeno de pessoas) do mundo. Nosso sistema agroalimentar é complexo e contraditório, temos recursos para alimentar a todos, há território e capacidade de gerar alimentos de forma saudável e sustentável, porém as comunidades tradicionais são ameaçadas ou impedidas do acesso às suas terras, e crescem os casos de doenças crônicas como diabetes, hipertensão e obesidade, causadas muitas vezes por uma dieta rica em produtos alimentícios processados e ultraprocessados.
O Agronegócio promove fome e adoecimento, além de contribuir para o ecocídio, através de diversos impactos ambientais, como a contaminação de terras e alimentos por agrotóxicos, por exemplo.
Nesse contexto a insegurança alimentar tende a ser invisível, quem sente fome, além da carência de alimentos, precisa conviver com a falta de água, energia elétrica, meios de comunicação, acesso à educação, saúde entre outras condições básicas de sobrevivência e desenvolvimento saudável. Desse modo se torna inviável reunir forças para lutar contra a fome e reagir a essa expressão cruel de desigualdade social.
De acordo com relatório da ONU de dezembro de 2021, a América Latina foi o território com maior aumento de insegurança alimentar (IA) moderada ou grave do mundo, registrando 267 milhões de habitantes nessas condições, sendo que uma parcela de 60 milhões desse total de pessoas se encontrava em situação de fome.
A fome é multifatorial, e uma das principais causas é o desmonte de políticas públicas, como, por exemplo, a extinção do Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, que revogou diversas políticas públicas em andamento voltadas ao combate à insegurança alimentar e nutricional.
As Centrais de Abastecimento (CEASAS), tem importante função no abastecimento de produtos frescos. No total, são 74 Ceasas no país, sendo importantes para o escoamento da produção da agricultura familiar em grandes centros urbanos, muitas vezes por meio de feiras livres. Mercados atacadistas como a CEAGESP ou as CEASAS ainda são fundamentais na determinação de preços, o desmonte e o sucateamento desses postos de distribuição transfere o abastecimento de produtos frescos às grandes distribuidoras, que são desvantajosas para os pequenos produtores.
A redução das políticas de estoques reguladores, iniciada já no início da onda neoliberal na década de 1990 e aprofundada no atual governo, soma mais uma variável que aumenta a vulnerabilidade da população através da volatilidade de preços de itens básicos como arroz, feijão e trigo.
A Companhia Nacional de Abastecimento (CONAB) é responsável pela execução dos Instrumentos de Política Agrícola, que visam garantir os preços mínimos aos produtores, assim como evitar o aumento abusivo aos consumidores finais.
A falta de estoques da CONAB em 2020 para açúcar, feijão e diversos itens básicos (não por falta de produção), fez com que no fim da cadeia produtiva o consumidor tivesse um aumento alto de preços, expondo grande parte da população à fome em plena pandemia.
Também em 2020, o governo reduziu a taxa de importação de alimentos como a soja e o arroz, não realizando intervenções sobre o aumento de mais de 100% nos preços dos principais alimentos da cesta básica.
O Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) contribuiu para o fortalecimento da agricultura familiar e o combate à fome aumentando o abastecimento popular de alimentos através do poder de compra do governo na dinamização da economia e circuitos curtos de segurança alimentar e nutricional. Dados do ano de 2019 apontam que a modalidade que mais sofreu cortes orçamentários no PAA foi a compra com doação simultânea, onde o governo adquire produtos da agricultura familiar e doa para pessoas em situação de vulnerabilidade alimentar por meio de restaurantes populares, creches, asilos e instituições que fornecem cestas básicas para indígenas e quilombolas.
O PAA fortalecia associações de agricultores familiares, porém com a redução da participação da CONAB no programa, passou a privilegiar grandes e médias cooperativas, dando prioridade a grande quantidade de produtos e pouca variedade, cenário contrário ao encontrado no contexto de pequenos produtores, portanto esses foram demasiadamente prejudicados. Além disso, entraves burocráticos inviabilizam que quilombolas, indígenas e pequenos agricultores tenham benefícios propostos pelo PAA.
O Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), tem mais de 60 anos de existência e é considerado o maior programa de fornecimento de refeições do mundo (cerca de 50 milhões de refeições diárias), ele contribui ao PAA exigindo legalmente (Lei 11.947) que 30% dos alimentos sejam provenientes da agricultura familiar. Isso favoreceu a oferta de alimentos in natura e mais sustentáveis na merenda escolar, gerando também maior estabilidade financeira aos pequenos produtores.
O Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea), era formado por membros da sociedade civil e do poder público, e foi essencial para que o país saísse do mapa da fome em 2014, atuando na formulação da Lei Orgânica de Segurança Alimentar (11.346/06) e do Plano Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, de 2011, infelizmente ele foi extinto em 2019.
O Guia Alimentar para a População Brasileira lançado em 2014 é um documento que classifica os alimentos de acordo com o grau de processamento e recomenda que a alimentação dos brasileiros se baseie em alimentos in natura e minimamente processados, que são aqueles obtidos diretamente da natureza ou que passam por alterações mínimas, como lavagem e empacotamento. A recomendação de evitar alimentos e bebidas ultraprocessados prejudica a indústria de alimentos, e levou o Ministério da Agricultura a solicitar uma revisão urgente do Guia, sendo esse mais um ataque à soberania alimentar.
Os dados indicam que a fragilização de políticas públicas é a principal causa de aumento da fome. Portanto, o fortalecimento de políticas de Segurança Alimentar e Nutricional como o PNAE, PAA, CONAB volta do CONSEA, assim como a redução do desperdício de alimentos que ocorre em diversas fases do sistema alimentar, são formas efetivas de redução dos níveis de insegurança alimentar e caminhos para atingir a soberania alimentar no país.
Nutricionista Valkiria Assis
CRN-3 71936/P
Referências:
BBC. 3 números que mostram o impressionante aumento da fome na América Latina. 2021. https://www.bbc.com/portuguese/internacional-59497952
Câmara dos Deputados. Extinto pelo governo, o Consea é essencial para combater a fome. 2019.
Campos, À. L.; Goldfarb, Y; DESAFIOS PARA O ABASTECIMENTO E SOBERANIA ALIMENTAR NO BRASIL. 2021.
CRN 6. Pesquisa analisa atuação do CONSEA, extinto em 2019, na formulação de políticas de combate à fome. 2022.
Declaração de Nyélény. Selingue - Foro Mundial pela Soberania Alimentar. 2007. https://nyeleni.org/spip.php?article327
FAO. Oficina Regional de la FAO para América Latina y el Caribe. https://www.fao.org/americas/publicaciones-audio-video/panorama/2020/es/
Governo do Estado de São Paulo. Saiba mais sobre o Consea.
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